terça-feira, 12 de março de 2024

50 anos e o medo ao virar da esquina

 Passei esta noite de 11 de Março da mesma forma que passei a noite algures em Novembro de 2016, dia 8 ou dia 09, quando se conheceram os resultados das eleições americanas.

tudo o que tinha, inocentemente dado como garantido, começa a quebrar-se e cai o véu. Eu, que sempre tinha confiado no bom senso da maioria das pessoas, na inteligência comum e na certeza de que as mentalidades bacocas e perigosas não passavam de pequenos sussurro, escondidos em páginas perdidas da internet, motivo de chicota quase sempre.

Não. Em 2016 a ignorância orgulhosa saiu dos buracos onde se escondia. Ser troglodita, insano e radical passou a ser aceitável e apenas uma opinião como tantas outras.

Fast Forward para 2024 e já nada nos surpreende. A Europa já está a sofrer do problema . A extrema direita infiltrou-se calmamente em muitos países europeus. Mais polida, menos agressiva, mais aceitável?

Ouço várias pessoas sem medo deste extremismo, sem sobressalto e fico a pensar: será que os alertas não são entendidos da mesma maneira por todos? Será que alguns preferem arriscar só para ver o que acontece?

Aqui chegamos e espero não ser testemunha de mais acontecimentos históricos. Mas vou estar atenta. E Educar.




sábado, 21 de março de 2020

"Os mortos e os fósforos"

Em tempos de quarentena, de onde vemos a Primavera nascer pela janela, o tempo que nos é dado serve para relembrar outras vidas, outras calamidades.
Há beleza em tudo, até na morte.

"Era ao cair da tarde — e havia mortos. 
Todos muito juntos, enlameados, compridos. Alinhados, distanciados para sempre, ali aguardando o arrumo definitivo. 
Ali, ali no cimento frio de um quartel de bombeiros, no fim de um domingo de Inverno.

Eu estava ao telefone, um telefone de moedas de cinco tostões, a dar para o jornal o número de mortos, os seus nomes, as suas idades.Ia escurecendo, escurecendo, e eu já não via os nomes escritos à pressa, abreviados, secos.

Um bombeiro, uma pilha nas mãos, tentava auxiliar a minha leitura, uma leitura triste, sincopada, hesitante de quando em quando. Eu sabia que tinha os mortos todos atrás de mim, indiferentes, quietos, não se importando absolutamente nada que lhes trocasse os nomes. Mas eu não queria cometer o mínimo erro, o mais pequeno deslize.

“Se tu és João” — dizia para mim — “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.”

E teimava, teimava em ser exacto, pedia, pedia ao bombeiro que mantivesse o foco da pilha sobre o papel em que tinha escrito os nomes dos mortos. E carregava nas moedas de cinco tostões, mantinha a ligação telefónica, identificava-os um a um.

O tempo passava, o tempo passava sem luz eléctrica, e eu estava sempre ali ao telefone, e os familiares dos mortos iam entrando (que longa bicha!), identificavam os mortos, os nomes dos mortos eram-me dados, e eu dava os nomes dos mortos ao jornal.

Ouvia o choro dos vivos, ouvia o silêncio dos cadáveres, ouvia a noite lá fora — Depressa! Depressa! — diziam-me do jornal — Depressa que é para a terceira edição!

Iam-me faltando as moedas de cinco tostões, sentia-me aflito, pedia que me trocassem moedas de cinco, dez escudos.

E os nomes dos mortos continuavam na minha boca, lidos um a um, o mais exactamente possível.
Como um preito de homenagem.
Como um choro.

Chegavam aos meus ouvidos pormenores da tragédia, da chuva, da lama.
Eu carregava nas moedas de cinco tostões, afligia-me com o seu desaparecimento contínuo e, automatizado já, ia lendo os nomes dos mortos à luz da pilha.
Escuridão total.
— Acabou-se a carga! — disse o bombeiro.
O suor tomou-me o corpo todo — e os meus dedos amarfanhavam o papel com os nomes dos mortos ainda não transmitidos.
E agora? E agora? Agora que a pilha tinha dado de si — que fazer, que fazer?
— Acendam fósforos! — gritei — Estes fósforos!

E assim foi: à chama tremida do enxofre, dos fósforos, acesos um a um, fui lendo o nome dos mortos que restavam, que estavam ainda no papel, sem o mais pequeno deslize.

“Se tu és João” — dizia para mim — “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.”

Quando, finalmente, abandonei o telefone, ganhei a rua, respirei a noite, apeteceu-me loucamente um cigarro, um cigarro que me turvasse, um cigarro para esquecer aquilo tudo.
Meti, os pulmões ansiosos, um cigarro na boca — mas não pude, não pude fumar, não pude acender o cigarro: os mortos tinham queimado todos os meus fósforos."

Pedro Alvim era jornalista do Diário de Lisboa. Esta crónica foi publicada em O Homem na Cidade (Prelo Editora, 1968)